Para enfrentar
os impactos sanitários, econômicos e sociais da crise do coronavírus (covid-19),
as autoridades governamentais brasileiras terão de lidar com um cenário de
guerra sanitária e economia de guerra. Com o país já praticamente em lockdown, a
paralisação da demanda de bens e serviços provocará uma contração brutal da renda
agregada, o aumento massivo do desemprego dos trabalhadores formais e informais
e uma situação de penúria destes últimos e da população pobre.
Dr. André Nassif destaca a necessidade de medidas extraordinárias na economia para vencermos os efeitos da pandemia do coronavírus |
O
governo deve sinalizar imediatamente ao mercado que atuará como comprador de
última instância
Nesse cenário extremo, não faz sentido
pensar que aumentos de gastos governamentais acarretarão incerteza quanto à
solvência da dívida pública. Maior incerteza haverá se o governo brasileiro não
sinalizar, de imediato, que evitará a quebradeira generalizada de empresas e a
destruição de produto potencial no Brasil. Será preciso atuar em diversas
frentes, o que exigirá forte coordenação entre as diversas esferas governamentais,
já que o maior problema será colocar em prática as medidas para mitigar os
efeitos do terremoto em curso. O desafio será fazer o dinheiro chegar
rapidamente às famílias e empresas afetadas.
A primeira frente é direcionar os
recursos públicos necessários para os serviços de saúde funcionarem
eficientemente, evitando que entrem em colapso. As prioridades são salvar vidas
humanas, minimizar a taxa de mortalidade do grupo mais vulnerável e assegurar o
fornecimento de equipamentos médicos à rede do SUS e hospitais privados.
A segunda é assegurar transferência de
renda mínima para os grupos mais vulneráveis da população, como os já
cadastrados no Bolsa Família e a maioria dos trabalhadores informais que
ficarão desempregados durante o tempo de confinamento. Esses recursos deverão
ser bancados temporariamente pelo Tesouro.
A terceira é evitar o total
estrangulamento dos fluxos de caixa das empresas, visando descartar um efeito
cascata que levaria à interrupção dos pagamentos de todos os tipos de dívida,
colocando em risco a solvência do sistema bancário. Nessa crise da covid-19, em
princípio não faria muito sentido o governo ampliar gastos para recompor
demanda perdida, porque empresas e trabalhadores ficarão temporariamente sob lockdown.
No entanto, como já estamos no
“momento Minsky”, a partir do qual quedas expressivas dos preços dos ativos e
colapso significativo da demanda e dos fluxos de produção colocarão boa parte
do sistema produtivo sob risco de falência, o governo deve sinalizar
imediatamente ao mercado que atuará como comprador de última instância (big
government), única saída para eliminar o risco de uma Grande Depressão, como
insistiu Hyman Minsky, em seu clássico “Stabilizing an Unstable Economy” (Yale
University Press, 1986).
Para oxigenar o setor real da
economia, o governo deverá suspender a cobrança de impostos indiretos e assumir
a garantia das dívidas ou a compra de dívida corporativa, privilegiando as
micro, pequenas e médias empresas, que enfrentarão maior asfixia em seus fluxos
de caixa. O Tesouro pode também atuar como demandante de última instância em
setores em que possa haver mobilização controlada da mão de obra (por exemplo,
limpeza, higienização das cidades, construção de hospitais provisórios de
campanha etc).
Quando as medidas de distanciamento
social forem relaxadas e a economia voltar a operar em condições de
normalidade, o governo deveria assumir, definitivamente, o protagonismo dos
investimentos em infraestrutura pública, a fim de promover uma recuperação mais
rápida e sustentável. Isso exigiria a substituição da Emenda do Teto de Gastos
por uma estratégia de ajuste fiscal de longo prazo que não comprometesse gastos
mínimos do governo (como proporção do PIB) em infraestrutura.
A última frente é a sinalização de que
o governo irá oferecer linhas de crédito para capital de giro para que as
empresas, mesmo sob a pressão imposta pelo lockdown, continuem a manter um
nível mínimo de produção. Nesses momentos é que se percebe a importância de o
Brasil contar com bancos públicos, diferentemente de muitos países
desenvolvidos, cujos bancos centrais não têm outra opção senão comprar títulos
do Tesouro (ou seja, imprimir dinheiro) para cumprir tal função.
O BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa
Econômica devem suspender os serviços das dívidas já contraídas, trocar a folha
de pagamentos de salários por recebíveis das empresas paralisadas e manter
linhas abertas de capital de giro, com taxas de juros subsidiadas, por um
período provisório de seis meses, prorrogáveis até que o sistema bancário
privado deixe para trás a compressão de liquidez e retome o ritmo normal de
suas linhas de financiamento.
No entanto, se houver reincidência do
surto epidêmico e o período de confinamento social for estendido por muito
tempo, será preciso que a União crie dívida pública adicional mediante a venda
de títulos ao setor privado e, em casos extremos, ao próprio Banco Central do
Brasil - o que requererá mudanças provisórias na Lei de Responsabilidade
Fiscal, até que a situação de economia de guerra tenha sido totalmente
dissipada.
Numa economia de guerra, se for
preciso que, nestes casos extremos, a dívida pública seja financiada por
emissão monetária (uma forma alternativa de helicopter money), não faz sentido
conjecturar sobre inexistente risco de default governamental. A escolha recairá
entre aumentar temporariamente - e não permanentemente, que fique bem claro -,
a dívida pública em pontos de percentagem do PIB que poderá alcançar dois
dígitos, ou aceitar o colapso econômico e o caos social generalizado, como já
sentenciara Minsky no livro mencionado.
Tamanho esforço de “guerra” implicará
avanço substancial dos déficits fiscais e da relação dívida/PIB. Entretanto, ao
deixar claro para a sociedade e para os agentes econômicos em geral que esse
desvio temporário da “responsabilidade fiscal” é o custo de oportunidade que
todos deverão pagar para evitar uma completa deterioração do aparato produtivo
e do tecido social, as autoridades econômicas brasileiras estarão contribuindo,
paradoxalmente, para se antecipar à confiança que deverá ser reconstruída mais
adiante para que alguma perspectiva de retomada possa ser vislumbrada em um futuro
incerto.
André Nassif é doutor em Economia pela
UFRJ e professor associado do Departamento de Economia da Universidade Federal
Fluminense. E-mail: andrenassif27@gmail.com.
Artigo
publicado no jornal Valor Econômico, Caderno Opinião, de 06/04/2020, com o
título “O que fazer numa economia de guerra".
A crise não foi causada pelo coronavirus e sim por governadores e prefeitos ditafires.
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